Renúncias fiscais no Brasil podem chegar a R$ 903 bilhões em 2026, diz estudo
Quanto o governo perde com renúncias fiscais que favorecem principalmente os mais ricos? De acordo com a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional), esses valores podem atingir R$ 618,4 bilhões em 2026 — quase quatro vezes o orçamento previsto para o Bolsa Família no mesmo ano (R$ 158 bilhões).
Renúncias fiscais, também chamadas de gastos tributários, são valores que o governo deixa de arrecadar ao conceder isenções, anistias, subsídios ou benefícios para setores, atividades ou grupos específicos.
“Alguns benefícios são importantes”, avalia Mauro Silva, presidente da Unafisco, “mas nem todos. Quando os benefícios fiscais não cumprem objetivos como pleno emprego, desenvolvimento sustentável e redução das desigualdades, caracterizam privilégios tributários.”
O levantamento da Unafisco enquadra como “privilégios tributários” os benefícios sem contrapartida social comprovada. Além dos gastos apontados pela Receita Federal no Demonstrativo dos Gastos Tributários (DGT), a Unafisco inclui outras três renúncias em sua conta, totalizando R$ 903,3 bilhões em gastos tributários para 2026.
Desse total, R$ 618,4 bilhões (68%) seriam privilégios, sem contrapartida social, e os 10 maiores somam R$ 479,6 bilhões, o que representa 78% do total desses privilégios.
No topo da lista está a isenção de lucros e dividendos, que causa renúncia de R$ 146,1 bilhões aos cofres públicos, mesmo após o desconto de R$ 32 bilhões previstos com a reforma do Imposto de Renda, que taxará dividendos em 10%. A Unafisco argumenta que, apesar da taxação, dividendos seguem com benefício fiscal no país.
Silva destaca que essa isenção não incluída no gasto tributário impede debates legislativos sobre seu impacto. “Sabemos que R$ 1 trilhão em dividendos é distribuído anualmente, e isso precisa ser discutido no Orçamento.”
O segundo maior valor corresponde à não instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), com potencial de arrecadação de R$ 100,5 bilhões. O presidente da Unafisco considera essa omissão legislativa, citando decisão recente do Supremo Tribunal Federal que reconheceu essa lacuna, sem estabelecer prazo para solução.
A taxação dos super-ricos foi uma bandeira do governo Lula em seu terceiro mandato. A reforma do IR, sancionada em novembro, isenta quem ganha até R$ 5 mil e concede descontos até R$ 7.350, enquanto taxará rendas acima de R$ 600 mil em até 10%, incluindo lucros e dividendos de valores acima de R$ 50 mil por mês pagos por uma mesma pessoa jurídica.
A pesquisadora Lorreine Messias, do Insper, concorda que a isenção de dividendos e a não criação do IGF podem ser considerados gastos tributários, mas lembra que não é certo que o IGF seja um bom imposto.
Ela revisou experiências internacionais e constatou que a maioria dos países que adotou o IGF descontinuou o imposto no início dos anos 1990. Hoje, apenas Noruega, Suíça, Espanha (Catalunha) e Colômbia o mantém.
O imposto tem baixa arrecadação devido à sua alta elasticidade, pois aumentos na alíquota levam a evasão, ocultação e transferências de patrimônio, lícitas e ilícitas. Além disso, a gestão do IGF demanda grande esforço da administração tributária e não há evidências de que tenha reduzido desigualdades nesses países.
“Nossa Constituição tem 37 anos e à época faltavam recursos metodológicos e experiências para avaliar o IGF”, explica Messias. “O debate público precisa avançar e não ficar preso a previsões constitucionais.”
Mauro Silva reconhece a polêmica, mas defende a discussão sobre o IGF como questão de justiça tributária, mesmo com baixa arrecadação.
Também estão na lista os efeitos negativos dos parcelamentos especiais de débitos tributários, como Refis e Pert. Esses programas, usados mais de 40 vezes desde 2000, geraram renúncia de R$ 176 bilhões até 2018, com cerca de 60% da dívida original perdoada.
A repetição dos programas levou contribuintes a planejarem atrasar pagamentos em busca de condições melhores. Apesar da mudança em 2020, a Unafisco estima um impacto de R$ 43,9 bilhões de renúncias desses programas para 2026.
Outro privilégio considerado é a parcela do Simples Nacional que favorece empresas com faturamento acima de R$ 1,8 milhão, visto que essas não contribuem significativamente para empregos, ao contrário das menores, que geram 75% dos empregos no regime. Esse benefício deve consumir R$ 35,7 bilhões em 2026.
O Simples, regime simplificado para micro e pequenas empresas, pode ser adotado por negócios com receita de até R$ 4,8 milhões, patamar criticado por desestimular empresas a sair do regime especial.
A Zona Franca de Manaus, um parque industrial com incentivos fiscais há quase 60 anos, está entre os maiores privilégios, com perda estimada de R$ 35 bilhões para o governo em 2026.
Lorreine Messias lembra que políticas públicas devem ser transitórias e questiona a ausência de avaliação séria da Zona Franca, existente há seis décadas.
A desoneração da cesta básica, que beneficia pessoas com capacidade contributiva, inclusive fora do Bolsa Família, representa impacto de R$ 30,1 bilhões em 2026.
Dos R$ 903,3 bilhões em gastos tributários estimados, R$ 284,8 bilhões seriam com contrapartidas sociais ou econômicas, incluindo deduções de saúde e educação no Imposto de Renda da Pessoa Física.
A Unafisco defende que essas deduções são relevantes devido à insuficiência de investimentos públicos, mas reconhece que beneficiam principalmente quem declara Imposto de Renda, ou seja, os mais ricos.
Segundo Messias, isso torna a tributação da renda mais regressiva, pois famílias mais ricas gastam mais em serviços privados, o que indica a necessidade de revisão desse desenho tributário.
Silva reconhece as críticas, mas ressalta que falta debate aprofundado e que grupos com poder de influência no Congresso dificultam a rediscussão do gasto tributário.
Ele lembra que, em 2021, uma emenda constitucional estabeleceu limite de benefícios tributários a 2% do PIB, mas excluiu alguns subsídios que mais oneram o Orçamento, como dedução da cesta básica, benefícios para entidades sem fins lucrativos, Zona Franca de Manaus, Simples e Microempreendedor Individual.
“Há captura do Orçamento por setores que exercem forte pressão e protegem seus benefícios”, afirma Silva, destacando a dificuldade de mudanças devido à influência desses grupos no Legislativo.
Créditos: BBC News Brasil