Economia
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Argentina enfrenta ciclos históricos de instabilidade política e econômica

A Argentina tem lidado com instabilidade política e econômica desde meados do século 20. Esse cenário é marcado por frequentes mudanças na condução econômica, déficits fiscais permanentes e escassez de dólares, o que compromete o pagamento de suas obrigações externas devido a problemas em sua balança de pagamentos.

O presidente Javier Milei, eleito em novembro de 2023 e representante do partido La Libertad Avanza, adotou uma agenda de liberalismo econômico e austeridade fiscal, buscando estreitar laços com os Estados Unidos. Ao assumir, o país enfrentava uma inflação anualizada de 160,9%. Atualmente, a inflação acumulada em 12 meses está em 31,8%. O governo enfrenta dificuldades para conter a desvalorização do peso argentino, que tem sofrido pressão frente à demanda por dólares provocada pela instabilidade política.

Após a divulgação de áudios que indicam favorecimento em contratos envolvendo sua irmã Karina Milei, o presidente encara as eleições legislativas de meio de mandato, marcadas para 26 de outubro de 2025, com prognósticos desfavoráveis para seu partido, especialmente após os resultados das eleições provinciais de Buenos Aires em setembro.

Milei recebeu apoio financeiro dos Estados Unidos por meio de um swap cambial de cerca de US$ 20 bilhões, acordo que permite troca de moedas para prover liquidez e estabilizar o câmbio.

O ex-presidente dos EUA, Donald Trump, condicionou a continuidade desse apoio à vitória eleitoral de Milei, o que especialistas ouvidos pelo Poder360 consideram improvável.

O país continua enfrentando problemas tradicionais: falta de disciplina fiscal, ausência de um rumo econômico-público claro e dificuldade em equilibrar a balança de pagamentos. A instabilidade intensifica a fuga para o dólar, pressionando as reservas internacionais e elevando o risco de novas desvalorizações da moeda local.

Em termos comparativos, em setembro de 2025, o Brasil tinha US$ 355 bilhões em reservas internacionais, o Chile US$ 47,4 bilhões, enquanto a Argentina possuía US$ 40,3 bilhões, conforme dados da Trading Economics.

A escassez de reservas restringe a capacidade do Banco Central da República Argentina (BCRA) de intervir para sustentar o peso. A falta de dólares leva à desvalorização da moeda, aumento da inflação e dificulta o pagamento das dívidas externas e importações. A discrepância entre o dólar oficial e o paralelo gera distorções no mercado, prejudica empresas importadoras e estimula especulação financeira, aumentando a volatilidade econômica e dificultando a implementação de políticas de estabilização.

O professor Allan Gallo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, descreve o contexto pré-reformas de Milei como “ruim”, citando um risco iminente de hiperinflação estimado em 15.000% ao ano.

Ele destaca que as propostas econômicas do presidente baseiam-se em três eixos, incluindo um “ajuste de choque” que envolve cortes em subsídios de energia, transporte e obras públicas e a diminuição dos repasses a governos provinciais. O professor Matheus Oliveira, da Universidade Federal de Uberlândia, aponta que as medidas têm impacto imediato forte e as considera um “remédio amargo”.

Gallo enfatiza que instituições frágeis dificultam a continuidade das medidas nos governos seguintes e que os ajustes fiscais devem ser mantidos para normalizar a economia. Oliveira enxerga o cenário como uma transição normal na democracia, porém ressalta que as divergências políticas dificultam a aplicação consistente das medidas.

A Argentina é uma sociedade profundamente polarizada, com raízes peronistas e anti-peronistas. O peronismo é um movimento político que combina nacionalismo, justiça social e forte presença estatal na economia, alternando-se no poder sob diferentes vertentes políticas.

O economista argentino Andrés Ernesto Ferrari Haines, da UFRGS, define o peronismo como um “fenômeno de não integração da população”, que ressurge sempre que há exclusão social.

Para Oliveira, a Argentina está presa a um ciclo de instabilidade política que se reflete na economia, um problema estrutural devido à ausência de consenso social sobre como enfrentá-lo.

Gallo afirma que a busca por soluções imediatas é histórica. Segundo ele, priorizar resultados de curto prazo tem funcionado como uma anestesia, mas afasta investimentos, pois empresas e investidores demandam previsibilidade fiscal e econômica para decisões de longo prazo.

Exemplos históricos mencionados são o Plano Cavallo e a moratória de 2001.

O Plano Cavallo, implementado em 1991 pelo ministro da Economia Domingo Cavallo no governo Carlos Menem, encerrou a emissão de moeda sem lastro, cortou gastos e fixou o câmbio ao dólar para conter a hiperinflação. Essa medida estabilizou a economia no curto prazo, mas gerou desequilíbrios que culminaram na crise de 2001, marcada pela fuga de capitais devido à falta de base fiscal sólida.

O desequilíbrio fiscal e monetário dos anos 1990, aliado à perda de competitividade, levou à moratória da dívida externa em 2001, quando o governo de Fernando de la Rúa suspendeu pagamentos a credores internacionais diante da falta de dólares.

O corralito, bloqueio de saques bancários, gerou recessão, desemprego massivo, aumento da pobreza e crise política, com cinco presidentes em 11 dias. Naquele período, o BCRA possuía reservas externas muito baixas ou negativas, incapaz de defender a moeda, honrar importações ou refinanciar dívidas.

A recuperação iniciou sob o governo de Néstor Kirchner, com desvalorização do peso, reestatizações e boom das commodities, fortalecendo as exportações.

A sucessora Cristina Kirchner manteve uma política intervencionista, ampliando subsídios e controles, o que reacendeu a inflação.

Durante seu mandato, a Argentina enfrentou conflitos com fundos abutres que recusaram acordos de reestruturação da dívida, dificultando o acesso ao crédito internacional e forçando longas negociações para evitar calotes.

O equilíbrio foi frágil, com medidas intervencionistas que mantinham o consumo e subsídios, mas sem resolver problemas estruturais, deixando o país vulnerável a crises futuras.

Em 2015, Mauricio Macri tentou reverter o quadro, reduzindo subsídios e buscando apoio do FMI para sinalizar disciplina fiscal, o que resultou em novo ciclo de endividamento.

O governo seguinte, de Alberto Fernández, enfrentou a pandemia, retomando controles e subsídios em meio a inflação crescente e queda das reservas.

Com a eleição de Milei, o país passou a uma nova fase de reformas liberais, incluindo privatizações, corte de subsídios e busca por equilíbrio fiscal.

No início do século 20, a Argentina era uma potência econômica com forte base agrícola-exportadora, ampla classe média e infraestrutura semelhante a países europeus. Exportava grãos, leite e carne globalmente, e Buenos Aires era um centro intelectual e cultural da América Latina.

Bruno Sindona, conselheiro do CDESS, vê o país como um “caso de regressão de desenvolvimento”, em que mudanças globais, desequilíbrios internos e incapacidade de sustentar o crescimento levaram ao declínio relativo.

Sindona defende que a única solução duradoura é um “novo pacto social” que permita o país reconhecer suas potencialidades e dificuldades para se reinventar, dado que não consegue recuperar seu espaço no cenário internacional.

Créditos: Poder360

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